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Cascos...
sábado, abril 24, 2004
 
A rua fétida, atapetada por cascas de frutos, vendidos em caixas, cuja disposição desenhava um estreito corredor por onde os transeuntes se atropelavam, em busca dos melhores preços, era a minha passagem para o cais onde o barco e Maria me esperavam...

A impaciência daquele caixão flutuante a que o pai dela chamava de ‘o meu Estorninho querido’ deixava-me nervoso. A ansiedade gerada por este sentimento dificultava o meu caminhar e fazia-me tropeçar constantemente, porque, agora, olhava frequentemente para o meu relógio de bolso redondo e sujo, cujos minutos apontados por braços negros firmes e sádicos, fugiam mais rápido do que o próprio Tempo.

Uma das mulheres, trajada de farrapos cinzentos e com dois dos seus dentes negros, fruto de fraca higiene dentária, agarrou-me bruscamente, quando um dos chapéus-de-chuva se prendeu à minha roupa. Puxou-me com ambas as suas mãos ásperas, como se tivesse sido minha intenção furtar o produto da sua sobrevivência.
Enquanto ela esbracejava e reclamava, pensava o quão infeliz este chapéu se sentiria, como escravo de tão malévola personagem, e que este acto heróico não seria mais do que uma tentativa desesperada, a qualque custo, de traçar ele próprio o seu destino...mesmo que isso implicasse agarrar-se a mim, da forma mais discreta possível, e, camuflado na multidão, tentar a sua sorte bem longe de sua dona.
Um grito do ‘Ipiranga’ vindo do cabo de um chapéu meio tosco, com algumas das varetas soltas, mas ainda operacional para liderar um movimento, sem precedentes, na história dos chapéus de chuva...mas o grito, desta vez, saiu mudo!
(Para o leitor mais interessado em causas justas, deixo-o com a informação de que duas semanas de tentativas mais tarde, acabaram por ser bem sucedidas e seguidas por chapéus em todo o mundo, até porque as notícias correram mais depressa do que aquelas geradas pelo porco falante que dissertou sobre os inconvenientes físicos de morrer nas pequenas vilas).

A pele, que encobria a dona dos chapéus de chuva, era esverdeada e esbranquiçada à volta dos olhos, e a roupa que cobria a sua pele estava forte e aleatoriamente manchada. O cabelo do vermelho mais nítido que havia visto havia algum tempo, até porque era uma cor que havia sido banida durante muitos anos antes da revolução das ‘manchas’. Os olhos mostravam uma menina do olho tímida, que desaparecia por vezes, quando esta tomava a cor branca, já que se confundia com a cor do resto do globo ocular...e ia oscilando entre milhares de cores ‘da forma mais natural possível e da forma mais espectacular que até fazia com que o arco-íris se roesse de inveja’ – assim era o slogan do tipo negro alto do olho angular que esbracejava e falava alto, ajudado pelos altifalantes colocados estrategicamente à sua frente, com o objectivo de vender mais e mais olhos do género mencionado.
Este encontrava-se duas barracas ao lado da barraca dos chapéus de chuva e, apesar do barulho da feira, continuava bem audível, nem que fosse pela sua imagem firme, com a capa negra de golas altas e rígidas à volta das suas orelhas pontiagudas, que faziam com que todos lhe dirigissem o olhar e a atenção.

A pele esverdeada da mulher devia-se a uma moda muito popular, entre as classes mais baixas, de colorir a própria pele de uma cor que, na maior parte das vezes, se identificava com o signo, crença lunar ou simplesmente por mera preferência subjectiva. Essa moda tinha conhecido o seu auge cerca de 20 anos atrás e era muitas vezes acompanhada por piercings ‘da sorte’ que ligavam uma anca à outra. Chamavam-lhes os ‘cintos genis’. E esta apresentava um pesado cinto que, com o aliado do tempo, havia distorcido a barriga e parte do seu corpo, que entretanto já não mantinham a rigidez de outras modas.

Tentei a custo explicar que não estava interessado em levar objectos do alheio, e muito menos chapéus de chuva durante a primavera, mas a mulher só me compreendeu bem quando lhe coloquei 10 rúpias na mão e lhe sorri esperançado que esta não me retribuísse o sorriso.

Caminhei uns metros ainda a despedir-me o mais cordialmente possível, enquanto ela guardava preciosamente as rúpias. Virei na esquina mais próxima à esquerda e quase choquei com uma das bolhas halográficas, que flutuava rente ao chão. A bolha de sabão, assim como muitas outras de vários tamanhos e tonalidades, era conduzida pela flauta de dois gumes que o ‘monge’ tocava. Este encontrava-se sentado em cima das suas próprias pernas cruzadas, enquanto as bolhas o rodeavam.
Chamavam-lhe o monge porque este tinha a mania de ficar em retiro espiritual com a sua flauta sem emitir um único som, que não fosse proveniente do seu instrumento de trabalho, e sentava-se como os monges se sentam...de pernas cruzadas e tronco o mais recto e digno possíveis. Além disso, tinha um tom de pele bronzeado em uníssono com a natureza, os olhos orientais e uma calvície escondida por debaixo de um chapéu, coberto de motivos dourados entrelaçados em cores laranja e pedras brilhantes sem valor, e cuja forma parecia a de o casco de um barco visto de pernas para o ar com dois berloques laranja em cada uma das pontas. E para tornar esta figura ainda mais apelativa, apresentava sempre umas vestes orientais longas com as mesmas cores do chapéu, e ornamentadas com motivos orientais.
O seu tronco, sempre direito, girava ora para a esquerda ora para a direita com o objectivo de manter o mais tempo possível as bolhas em circulação. O som, proveniente da sua flauta, mantinha as bolhas acima do solo em autênticas levitações artísticas. E os muitos transeuntes que passavam, paravam sempre, mesmo que não tivessem umas moedas para colocar na bandeja de madeira que recolhia a subsistência do monge.

Cada bolha apresentava um motivo. Quer dizer, algumas repetiam o tema mas eram sempre originais, quer nas personagens, quer nos movimentos por ela expressos, quer na encenação orquestrada, quer mesmo nos cenários. A que se encontrava à minha frente era ligeiramente baça mas suficientemente translúcida que me permitisse visualizar o seu interior. Lá dentro, uma bailarina descalça, de pele lisa e morena, esguia, elegante, de olhos negros, cabelo também negro mas ondulado, vestida com uma blusa justa e roxa, que lhe descobria o umbigo, dançava graciosamente e sorria. Sorria a tudo o que olhava, a cada passo que cuidadosa e levemente dava e levemente concentrou esse sorriso em mim e continuou, apesar dos seus movimentos o complicarem, a olhar para mim...e a sorrir.
Os movimentos estudados que faziam parte da sua performance denunciavam o óbvio, ou seja, que o seu sorriso se concentrava em mim de uma forma extraordinariamente genuína. Os seus passos cuidadosos, sobre um lago de água negra, produziam pequenos circulos na borda, que aumentavam de tamanho lentamente, à medida que se iam afastando do pé mágico da bailarina. Esses círculos perdiam-se num infinito de talento proporcionado pela beleza mimica de tal ser. E eu sentia-me contagiado pelo quase levitar de uma chama irradiada por cada sorriso que ela dava. Uma chama que me ia aquecendo as emoções. E as pessoas à nossa volta começavam a ficar contagiadas pelos nossos olhos que espelhavam aquilo que muitos haviam perdido...a esperança de tornar real os sonhos...
E eu acreditei. Acreditei simplesmente. Acreditei que tudo poderia ser possível. Tudo! Até apaixonar-me com uma simples e rápida troca de olhares. E amar e adiar o tempo. E levitar, fazendo com que os ponteiros do tempo retrocedessem e me concedessem novos momentos de felicidade conjunta. E tudo congelou, porque tudo o que nos envolvia não poderia atingir o calor que os nossos corações irradiavam. E eu sentia os pensamentos romper a bolha que nos separava. Sentia-a vir a mim e submergir na sua graciosidade. Sentia-me, pela primeira vez na vida, feliz.

Entretanto, o monge, nos poucos momentos que deixava de estar absorto nas suas composições musicais e nos seus pensamentos metafísicos, avistou o meu súbito interesse manifestado pelo retribuir genuino do sorriso da bailarina graciosa, e, como mestre ciúmento da sua própria criação, deixou a bolha assentar no solo, aos poucos e poucos, e rebentar.
E eu...como que acordei de uma hipnose com o estalo que a bolha deu ao se dissolver em nada.

Acelerei o passo para recuperar o tempo parado, enquanto olhava mais uma vez o relógio dos ponteiros preocupados. Os meus olhos semicerrados evitavam o espaço que me envolvia e os meus punhos fechados dentro dos bolsos do meu casaco protestavam surdamente contra o mundo real. Fechava-me numa concha cada vez mais apertada mas, mesmo assim, não ousava parar. Continuava em frente e confidenciava comigo próprio que assim é que devia de ser...’num mundo adverso, a melhor defesa é não nos envolvermos com ele...’
E, à medida que me convencia disso, sentia um peso físico brutal, abismal a dilatar-se nas minhas costas e isso fazia com que eu desacelerasse o ritmo com que seguia. Tinha que exercer mais força para dar cada passo. No segundo passo a força era ainda maior do que a exercida no primeiro. E, após alguns passos custosos, dei um derradeiro passo, depois de um esforço inglório e tive que parar e olhar para trás....não podia deixar de me alhear do que se passava. Afinal, qualquer coisa de bem real estava a reter a minha marcha...e não havia tempo. Estava atrasado e tinha que descobrir a raíz deste mal.
Finalmente, após alguma relutância tive que olhar para as minhas costas. Uma carapaça...ou melhor, uma concha enorme encaixada nas minhas costas foi-me apresentada ao meu olhar atónito e cada vez mais assustado.
A concha era constituída por uma espécie de quitina brilhante, avermelhada nas extremidades, e quase negra no ponto espiral mais afastado do meu corpo. Tinha ainda quatro superfícies côncavas de cor azulada, com cerca de 30 cm de diâmetro, espalhadas de forma geométrica, encaixadas na superfície da concha. Essas quatro superfícies eram quase da forma de semi-esferas perfeitas e brilhavam sintonizadamente tons de azul hipnótico. Apesar de não conseguir visualizar toda a área do objecto estranho e liso, que se encontrava colado à minha existência, a simetria desse mesmo objecto, possibilitava-me concluir sobre a sua forma como um todo. A minha perplexidade face a este cenário era embaraçante mas a vontade de me apressar sobrepunha-se.

‘Como é que vou chegar a tempo agora? ‘ – Esta foi uma frase que soltei, sem conseguir refrear a tempo os movimentos dos meus lábios, e que recapitulei, em eco, na minha mente, segundos depois, ainda aturdido com tal comentário. Como era possível estar mais preocupado com o atraso do que com o meu próprio bem-estar? As minhas prioridades tinham que ser revistas...mas agora não havia tempo!
Agora tinha mesmo de me libertar. Tentei arrancar e avançar o mais rapidamente que conseguia, para ver se me descolava do objecto empecilho, que me colava ao atraso cada vez mais assumido. Corri alguns metros, o mais rapidamente que podia. Era quase como se corresse sem que percorresse uma distância suficientemente lógica para que considerasse sequer ter sido uma corrida. Mas nada. E agora, para além de continuar com a concha bem colada às minhas costas, estava também exausto. Tinha percorrido alguns metros, sujos de poeira que, apesar disso, estavam suficientemente visíveis para que eu me apercebesse que não haviam sido muitos, nem estimulante tinha sido o esforço que havia dedicado a tentar libertar-me. A única coisa que havia libertado era muita poeira e alguma desconfiança que alguma vez chegaria a tempo ao meu destino.
Sentei-me. Arfei confusamente entre cansaço e fúria e, à medida que tentava respirar mais calmamente, procurava encontrar maior racionalidade no processo de fuga.
Tentei voltar-me de frente para a concha através de movimentos lentos e cuidados. Mas o esforço era ingrato.
Quase resignado encostei-me mais à concha. Deixei-me recostar aos poucos nela. E senti-me quase que engolido por ela. Uma espécie de sucção por entre uma mucosa que começava a envolver-me e, que de certa forma, me era muito confortável. Resisti com um inspirar doloroso do susto que me causou essa sensação. Tentei apalpar com as mãos essa mucosa estranha que me queria engolir a existência e senti uma humidade e um toque quente, macio e suave. Quase um convite a penetrar mundos aparte dos mundos por mim já iniciados no duro e difícil processo de decifração.
Para evitar encostar-me demasiado à concha, coloquei ambos os braços hirtos, esticados perpendicularmente com o chão, e com ambas as mãos a apalparem o solo poeirento. Nessa posição, exercia alguma força para evitar ser sugado para o desconhecido.
No entanto, a força que exercia parecia cada vez maior à medida que me ia cansando. Os meus braços tremiam, a minha razão já não apresentava muitas soluções, e aos poucos deixei-me conduzir por entre as mucosas da concha.
Resolvi despender as minhas últimas forças, numa última tentativa de evitar ser engolido vivo, e comecei a dar fortes guinadas, agora para ambos os lados, com o objectivo de derrubar a concha e, com alguma sorte, a partir contra uma pedra.
O esforço foi de tal forma exigente que acabei por desmaiar.

Uma brisa agradável balançava levemente pequenas folhas de um ramo fino de um pequeno feto selvagem. Brincavam ambos, como crianças absortas em imagens ingénuas, imaginando mundos reais e magnificientes onde tudo era magia e fantasia.
Essas folhas, por sua vez, começaram a fazer-me comichões, ao roçarem, ao de leve, no meu nariz, enquanto eu dormia enrolado sobre mim mesmo. Eram como que jogadas pela brisa, persistente em me ter atento ao seu vigor e ao seu jogo.
Afastei por diversas vezes o empecilho ao meu sono, com a minha mão, mas a persistência da brisa e do ramo levaram a melhor.
Acordei bem disposto e, do silêncio do sono, fui dar de caras com um recital de música, providenciado por pequenos melros vermelhos, de pequenas manchas azuis escuras em redor dos seus grandes olhos castanhos, e de bicos prateados. Estes encontravam-se lado a lado, em linha, em cima de um galho mais imponente do que o ramo que me havia acordado. Eram cerca de sete melros, e o galho era de uma acácia jovem que se erguia sem pressas para um céu azul-bebé.

Este ceú era de uma beleza hipnótica reconfortante, através de uma estrutura quase que gelatinosa e colorida com traços infantis e dóceis, espreguiçando-se calmamente, alheado do que se passava cá em baixo. Pequenos fragmentos de formas variadíssimas e de azuis ligeiramente mais sóbrios, que o da própria massa que compunha o ceú, encontravam-se acoplados, de forma cuidada, na sua superfície e transmitiam-me a intemporalidade associada a um mundo tão orgânico quanto belo. Esses fragmentos tinham formas muito sugestivas, como de búzios enormes, ou golfinhos em posições várias, ou ainda de esquilos e muitos outros seres orgânicos e inorgânicos. No entanto, a sua visualização merecia uma atenção especial, na medida em que, muitas vezes, quase se confundiam com o céu onde se encontravam encaixados. Era um mundo de e para criaturas atentas, de e para crianças prontas a brincar com a vida...

Os limites do jardim conseguia vê-los, muito ao longe, num espaço em que o céu encontrava o terreno fértil. Eram estruturas que se assemelhavam a estalactites enormes, nos confins da existência deste prado, que desenhavam os limites de tão peculiar cenário, e que ligavam estes dois espaços, tão distantes no ponto em que me encontrava. Era uma junção perfeita, graças à união de cores de verdes e azuis, que se fazia, aos poucos, com a ajuda de longuíssimas trepadeiras, que abraçavam e sustinham com força este casamento de formas, que mantinha e reprimia o conhecimento do que se encontrava para além destes limites. Mas era uma união feliz, a julgar pelo que se via. E era uma união segura, atendendo aos potenciais usurpadores da paz deste lugar idílico, de além fronteiras, que estavam, assim, impossibilitados de aceder a este mundo.

O tapete de relva, no qual me encontrava ainda deitado, era de tal forma macio que a inércia de me erguer soava ainda melhor do que a melodia inspirada provinda dos melros musicais. E por isso, cada breve tentativa de me levantar era reprimida pelo bem-estar que essa posição me proporcionava.

O tronco da acácia, que se encontrava à minha frente, estava a cerca de três metros de distância, ligeiramente deslocado para a direita. Devido ao declive pouco acentuado do solo, em que se encontrava, era, também ele, inclinado para a mesma direcção. No entanto, era um tronco robusto, para a pouca idade que aparentava, e revelava um temperamento algo nervoso, já que os ramos tendiam a deslocar-se, ora para cima ora para baixo, ora para a esquerda ora para a direita, como se estivessem em constante procura da perfeição estrutural. Uma estranha preocupação estética ou funcional...não tinha bem a certeza de qual das duas, mas seja qual fosse a preocupação, era óbvio que me surpreendia, não tanto pela orgânica perfeita como o processo era conduzido, mas mais pela procura em si, mais pelo objectivo de tão espantosa mutação física. Era como que uma vontade própria, conduzida por um objectivo criado por uma mente preocupada, pensante, reflexiva...
Por vezes, alguns dos ramos alongavam-se, distendendo-se até ao tamanho exacto da estrutura, desenhada em consciência por tão interessante ser, e, outras vezes, comprimiam-se sem nunca afectar os seres, que a procuravam como hospedeira. Ela era, de facto, uma verdadeira e conscienciosa hospedeira, que tinha em consideração todos os pequenos seres, que a procuravam como companheira, sem nunca os colocar em risco, aquando na sua busca pela perfeição. E isso evidenciava-se pelo cuidado que mantinha em não deslocar um centímetro o ramo em que os melros se encontravam, apesar de cada movimento, que levava a cabo, levar mais tempo do que aquele que levaria a qualquer um deste melros levantar voo, sem pôr em questão a sua integridade física. Todos os outros ramos, que me eram visíveis no momento, movimentavam-se lentamente, ora pela simples deslocação, através do tronco da acácia, ora pela modificação dos seus tamanhos originais.

Um movimento trepidante atraiu-me o olhar. Era um riacho que desenhava o perfil de um monte calvo no topo, mas luxuriante em toda a sua volta, com árvores musgosas, delgadas, bifurcadas e atarefadas em povoar bem aquele espaço ainda verde. O bigode do monte era claramente esboçado por uma cascata sonora, que se debruçava sobre pedras gastas e moldadas pelo som dos pingos que, a julgar pela quantidade de animais que se juntavam à sua volta, atraíam muitas criaturas. Os seixos, que atapetavam o fundo do riacho, estavam dispostos de forma eloquente. Parecia mesmo que a sua disposição era trabalhada diariamente, por alguém que não suportava a ideia de desorganização e, por isso, controlava, com afinco, o local exacto onde cada um devia estar colocado. A água cristalina, que corria lestamente, e se bifurcava mais abaixo, mais longe, por detrás da acácia, revelava uma frescura muito apelativa, pelo seu aspecto límpido e pela sonoridade harmoniosa. No ponto onde o riacho se separava em dois, um enorme tufo de relva elevava-se bem alto, criando a ideia de uma ilha que se prolongava indefinidamente até ao ponto em que o riacho daria lugar ao mar extenso. Alguns bambus violeta coloriam o espaço onde os tufos pareciam perder alguma imponência. Estes eram ora curtos, ora tão compridos como a acácia nervosa, ora grossos, ora finos como agulhas de lã. Entre eles, alguns ninhos de gansos delgados acomodavam-se, aproveitando o cenário idílico, a protecção e privacidade que o espaço lhes proporcionava. Alguns dos seixos que se elevavam, pela sua dimensão privilegiada, acima do nível do corrupio das águas do riacho, eram o poiso de sapos enormes e preguiçosos, que se espreguiçavam demoradamente ao sabor dos raios de luz, que lhes acariciavam a pele espessa e escorregadia. Um destes sapos, maior e mais azul do que os outros, saltou agilmente para um seixo ainda maior, do que aquele onde se encontrava, já que algumas gotas teimavam em trepar o seu posto de descanso, agora molhado.
E eu observava todo este cenário, maravilhado com a riqueza que o caracterizava. E, absorto como estava, só aos poucos me apercebi que um flap calmo provinha das asas de uma criatura, que flutuava à minha frente. Quando me apercebi, levantei-me num salto, e dei uns quantos passos para trás, com receio não sabia muito bem ainda do quê. Mais calmo, talvez pela candura do seu sorriso, ou pela imagem dócil da sua face, pude observá-la mais cuidadosamente.
Que graciosidade era esta que me fazia perder os sentidos, que me fazia perder a ideia de espaço e tempo, que me fazia perder a sensação das minhas próprias pernas, fazendo com que flutuasse, por momentos, ao sabor do bater calmo das suas asas...?
Ela emanava o odor de polón, que se espalhava, à volta dela, assumindo a forma de uma nuvem dourada, quase sempre oval. A sua pele era tão macia, como o mais puro dos veludos, e mais branca do que as nuvens de algodão. Os seus olhos pestanudos, azuis, assumiam a forma de duas luas cheias brilhantes. As suas pernas, esguias e longas, tinham as cores do céu e das árvores, em riscas que desciam circularmente, até encontrar dois espirais em lugar de dois pés. As asas eram um arco-íris de cores, um turbilhão de misturas de imagens. As cores variavam rapidamente e as asas eram enormes. Aliás, ela tinha dois pares de asas. Um par maior, que se encontrava mais acima, começando ao nível da sua cintura esguia e erguendo-se bem acima da sua cabeça de pele clara e outro que começava também ao nível da cintura ligeiramente mais abaixo do outro par, e que se prolongava até aos espirais, fazendo com que estes se deslocassem por vezes quando as batidas pareciam mais fortes.



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